quinta-feira, 26 dezembro 2019 14:57

Presidente do CNIACC: “É fundamental maior ligação das empresas da distribuição”

Fazer valer os direitos dos consumidores sem colocar em causa os da empresa. É esta a missão do CNIACC – Centro Nacional de Informação e Arbitragem de Conflitos de Consumo, cujo presidente, Fernando Viana, gostaria de ver mais empresas com estatuto de adesão plena e, entre elas, as do setor da distribuição, até porque são a segunda fonte de reclamações. No sentido de alterar este cenário, trabalha em parceria com a APED.

 

Store | Como descreve o percurso no centro desde que tomou posse?

Fernando Viana | Esta direção tomou posse em 2016 e tem sido um percurso desafiante. O CNIACC é supletivo em relação aos outros centros, isto é, existem diversos espalhados pelo País, mas, como não existia uma cobertura total, foi necessário criar um centro que resolvesse os conflitos de consumo dos consumidores das regiões que não eram abrangidas por nenhum outro.
Nasceu em 2009 por inspiração governamental da Direção-Geral do Consumidor, que esteve à frente dos destinos do centro até a direção atual tomar posse. A nossa missão é fazer com que o CNIACC seja o mais possível semelhante aos outros centros. 
É bastante desafiante porque este centro opera através de meios à distância. Enquanto os outros têm instalações físicas, onde as pessoas se podem dirigir, o CNIACC, com o constrangimento de os consumidores estarem espalhados por mais de 200 concelhos, não tem serviços de proximidade.
Podemos dizer que o que existe mais próximo do CNIACC são estruturas que algumas câmaras têm, que se chamam CIAC [Centro de Informação Autarca ao Consumidor]. Apoiam a nível local, ajudando o consumidor a encaminhar o processo, mas vem tudo ter a Braga, via online, por e-mail, correio... Depois temos uma equipa para a gestão processual do centro, que, até setembro do ano passado, era feita pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa (FDUNL), mas o contrato cessou e nós criámos esta equipa.

Houve mudanças no centro desde 2016?

Bastantes. Em 2015, entrou em vigor uma lei, que é uma transposição de uma diretiva europeia, que obriga todos os centros de arbitragem de conflitos de consumo do País a adotarem um conjunto de princípios e regras comuns.
O CNIACC teve de se adaptar. Por exemplo, transportar a sede do centro de Lisboa para Braga, fazer as adaptações necessárias impostas pela lei, passar de uma gestão que era feita por uma entidade terceira [FDUNL] para uma gestão nossa, modificar o site… Isto tudo com os meios relativamente escassos do centro.
Tem sido bastante desafiante, mas tem corrido bastante bem. Penso que 2019 é o ano em que se vão verificar os resultados destas mudanças, embora ainda haja muitos desafios pela frente.

Dessas mudanças, quais destaca como melhorias?

Penso que todas têm de ser encaradas como uma melhoria. A entrada em vigor da Lei n.º 144/2015 foi extraordinária para estes mecanismos, porque estamos a falar dos meios de resolução alternativa de litígios. Todos os países da União Europeia têm de disponibilizar estes meios aos consumidores, que somos todos nós, e todos temos problemas de consumo.
Por exemplo, a DECO é uma associação que se coloca do lado dos consumidores, a Associação Portuguesa da Empresas de Distribuição (APED) é a associação que se coloca do lado das empresas, e o CNIACC é um tribunal, está no meio. Não somos nem só de um lado, nem só de outro. Somos uma entidade imparcial, constituída por associações de consumidores e por associações empresariais.
Temos que tentar assegurar e garantir os direitos dos consumidores, tudo feito de uma forma bastante complexa, desde logo devido ao funcionamento à distância. É um serviço completamente gratuito para o cidadão, as pessoas não precisam de ser sócias, não pagam custas, nem taxas, e, por vezes, falamos de problemas com um significado económico bastante grande. Além disso, temos uma espécie de via verde com as grandes empresas e conseguimos resolver – de uma forma extraordinária, penso eu – aqueles pequenos problemas, que dão cabo da cabeça das pessoas, e que elas não têm capacidade económica para resolver, não têm tempo, não sabem como enfrentar e/ou não conhecem as leis.
São as grandes vantagens para o consumidor.

Que dificuldades têm vindo a encontrar?

Os escassos meios financeiros e a dificuldade de divulgar o centro, porque ainda é muito desconhecido, não só dos cidadãos e das empresas, mas da maior parte das instituições. E, como tem uma competência geográfica que é residual em relação aos outros centros – só funciona onde não funcionam os outros –, é necessário um esforço de divulgação e sensibilização junto das autarquias locais que estão dentro da nossa abrangência territorial. O objetivo é fazer com que elas também divulguem o centro junto dos consumidores.

Qual é a taxa de sucesso do centro?

É 54%. Nós temos uma taxa de não resolução muito elevada na área da arbitragem voluntária, porque a empresa pode recusar e a lei não nos dá ferramentas. As empresas não aderem de forma voluntária, e nós temos vindo a pressionar junto do legislador para mudar isto. A solução seria estender a arbitragem necessária às empresas de grande distribuição ou, pelo menos, que a adesão não fosse voluntária. Elas deviam ser obrigadas, no mínimo, a aderir aos meios de resolução de litígios onde têm estabelecimentos abertos.

Quais são os tipos de casos em que os consumidores pedem mais ajuda?

Neste momento, a maior fonte de conflitualidade, comum a todos os centros de arbitragem do País, são os "Serviços Públicos Essenciais", com maior predominância nalguns centros e menor noutros. 
No caso do CNIACC, em 2018, 56% dos processos é da área dos "Serviços Públicos Essenciais", o que corresponde a 743 processos; a seguir, vem o "Comércio a Retalho" com 286; e, em terceiro, a "Banca e Seguros", com 42. Há centros de arbitragem, como o de Lisboa, onde os "Serviços Públicos Essenciais" constituem mais de 80% do volume processual do centro.

Quantas empresas fazem parte da adesão plena?

A adesão plena vincula a empresa perante o centro. Quando a empresa a faz tem de aceitar a jurisdição do centro, em relação aos conflitos que tiver com os seus clientes. Ao fazer a adesão plena transmite confiança aos consumidores.
Em 2018, eram 20.599 empresas com adesão plena ao CNIACC. É uma gota de água no universo das empresas. Ainda assim, o número aumentou bastante com a entrada da Lei n.º 144/2015, porque o artigo 18.º obriga todas as empresas a informarem os clientes sobre os meios de resolução alternativa de litígio.  E o CNIACC é um desses meios, em alternativa aos tribunais judiciais, porque este tipo de conflito não faz sentido ser colocado no tribunal, devido aos custos que implica e pela demora e complexidade do funcionamento dos tribunais. Se eu tiver um problema com uma operadora de telecomunicações, e for ao tribunal pedir informação sobre como hei de pôr uma queixa, desisto passados 30 segundos de lá estar.Através destes meios [centros de arbitragem], o consumidor não precisa de desistir, porque servem mesmo para lhe dar empowerment. O objetivo é tentar fazer com que ele consiga obter ajuda, nesta relação assimétrica – ninguém tem dúvidas que é uma relação muito desequilibrada – de poder, entre o consumidor e um grande operador de comunicações.

As empresas de retalho preocupam-se com estas questões?

A segunda fonte de conflitualidade é o "Comércio a Retalho", com 286 processos de reclamação, em 2018, só no CNIACC. As empresas de grande distribuição que têm adesão plena ao CNIACC são muito poucas, é fundamental que as empresas que tenham uma ligação mais efetiva com estes centros de arbitragem.  Verificámos, da parte de algumas empresas, uma recusa sistemática à intervenção do centro quando são chamadas ao mesmo. É muito mau para os consumidores porque não conseguem resolver os processos.

O que tem o CNIACC e a APED desenvolvido juntos?

A APED é uma associação fundamental na existência do CNIACC, porque – como disse – há muitas reclamações na área do "Comércio a Retalho". Temos vindo a trabalhar juntos. Identificámos um projeto piloto que seria interessante desenvolver. Passava por fazer a adesão plena a algumas empresas da grande distribuição e ir acompanhando a resolução dos processos, para, no fim, apresentar um estudo de caso ao universo dos associados da APED. O intuito seria verificar as vantagens para as empresas da resolução via adesão plena, e apresentar a outras, no sentido de as cativar a fazer também a adesão plena.
As associações empresariais são fundamentais neste processo, pois temos, de um lado, consumidores e, do outro, empresas. Somos, de algum modo, uma identidade facilitadora, ou seja, a nossa função é resolver problemas dos consumidores e das empresas. Se eu tiver um problema contra uma empresa, isso também é um problema da empresa; provavelmente, se comprei lá o telemóvel, avariou, achar que tenho razão e eles não estão a ver o problema, então já não vou comprar lá mais nada.

Esta entrevista foi publicada na edição impressa da Store Magazine.

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