quarta-feira, 26 abril 2023 09:47

Diana Soller: "A Europa tem tudo para se tornar um ator político importante"

Em entrevista, a investigadora e oradora no APED Retail Summit 2023, Diana Soller, do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA) antecipa os desafios colocados à Europa pelo conflito entre a Rússia e a Ucrânia e antecipa o emergir de um movimento de desglobalização desencadeado pela crise económico-financeira de 2008 e adensado pela pandemia de Covid-19.

Store | O tema da mesa redonda é colocado como uma interrogação. Ainda estamos perante a dúvida de que será uma nova ordem ou já podemos colocar um ponto final nesta equação?

Diana Soller | Do ponto de vista geopolítico, há uma realidade nova e uma realidade que foi sublinhada pela guerra na Ucrânia. A realidade nova é a realidade regional. Sabemos que, independentemente do tipo de paz que se vai negociar, terá uma influência muito grande naquilo que chamamos as fronteiras de segurança da Europa. Pelo desenrolar da guerra, a hipótese de a Ucrânia vir a ser um Estado tampão entre a Rússia e a Europa já não se coloca. A Ucrânia e, provavelmente, outros Estados vão ser integrados nas fronteiras de segurança da Europa, pelo que haverá uma nova arquitetura de segurança. O que resta saber – e é absolutamente determinante – é de que forma a guerra termina. Porque o acordo de paz vai sempre refletir a realidade no terreno.

A grande interrogação é se a nova ordem regional europeia vai ser mais influenciada pela própria Europa e pelo mundo ocidental ou pela Rússia. Por isso, é que neste momento há uma tão grande vontade de que a Ucrânia saia o melhor possível nesta guerra. Os europeus, e os Estados Unidos, no seu laço transatlântico, compreendem que se a Ucrânia não tiver um resultado positivo neste conflito isso pode pôr em questão, de uma forma significativa, a segurança europeia.

Uma segunda questão relativamente à ordem política está relacionada com o que costumamos chamar uma nova guerra fria. Por volta de 2016, 2017, os Estados Unidos lançaram as bases para uma nova guerra fria com a China, que consideram que é o seu rival sistémico. E esse conflito latente adensou-se agora, de forma muito particular, porque os Estados Unidos se alinharam com a Ucrânia e a China alinhou-se com a Rússia. Isso colocou os países perante uma nova situação, além dos receios que já tinham um do outro.

O que nos leva à nova ordem geoeconómica…

Deste ponto de vista, temos alguns fenómenos, uns relacionados com a guerra na Ucrânia, outros relacionados com a nova guerra fria, outros ainda relacionados com a pandemia e com a fase anterior, e que indiciam que, de facto, estamos a chegar a uma nova ordem geoeconómica.

Estamos a falar de quê? A pandemia demonstrou que a Europa e os Estados Unidos estão muito dependentes das cadeias de abastecimento da China, o que identificaram como uma ameaça à sua segurança, quer económica, quer política. Temos assistido, principalmente da parte dos Estados Unidos, a um protecionismo económico muito grande, que já vinha de trás, mas que se adensou com a pandemia e que se manteve na administração Biden, tentando romper os laços económicos que tem com a China.

A Europa vai no mesmo sentido, ainda que de uma forma muito mais reticente. Porque, de alguma maneira, ainda vê a China, pelo menos em parte, como um parceiro comercial por excelência, embora reconheça que, quer a dependência de cadeias económicas, quer o apoio da China à Rússia, são fatores muito negativos para que essa relação comercial se desenvolva com naturalidade.

O que há de novo? O cenário de uma crise económica acentuada que, na verdade, não chegou a acontecer, porque a Europa percebeu que – apesar de ser altamente benéfico a aquisição de energia barata através da Rússia – havia fontes de substituição, que foram acionadas. E, em cerca de um ano, deixou de depender da Rússia em termos energéticos. No fundo, a Rússia não conseguiu fazer da energia uma arma neste conflito.

Outra questão, mais complexa, tem a ver com a possível extensão de uma crise alimentar que foi desencadeada pela deficiente transação de cereais e fertilizantes da Rússia e da Ucrânia para o resto do mundo. É uma questão que – não obstante os acordos que a ONU e a Turquia conseguiram estabelecer com os dois beligerantes – é suficientemente grande para alertar o mundo para o problema da segurança alimentar.

Este conjunto de questões poderá ter um impacto grande no que chamamos já de desglobalização. Tendencialmente, vamos assistir a uma desglobalização da economia. Ainda não estamos é certos da forma como vai afetar o mundo. Se vai ser uma desglobalização que se transformará em globalizações individuais dos Estados dos dois blocos que se estão a formar, se é uma desglobalização que exclui apenas os Estados Unidos e que continua a promover as trocas comerciais e financeiras entre a China, o sul global e a Europa. Não há ainda uma definição de como todas as crises à volta do protecionismo americano e da guerra na Ucrânia vão resultar no fim, na reconstrução dos mercados internacionais, quer sejam de capitais, quer sejam de bens e produtos. Que estamos a assistir a uma tentativa de desglobalização sem sabermos onde nos vai levar, estamos, mas ainda não há pensamento sobre isso.

Neste jogo de forças, antecipa que a Europa saia fragilizada ou fortalecida, do ponto de vista político e económico?

Do ponto de vista político, penso que, a longo prazo, a Europa tem tudo para se tornar um ator político importante. Se continuar esta aprendizagem do poder, no sentido da militarização, das mudanças de mentalidade para estar precavida para a guerra, no sentido do fortalecimento da NATO enquanto aliança de segurança. Esta questão é muito importante para os Estados Unidos, porque, tendencialmente, estão mais voltados para o Indo-Pacífico, por todas as ameaças que a China representa, mas precisam de um parceiro firme no espaço regional europeu.

Outro aspeto é a forma como a Ucrânia e a própria Europa vão sair desta guerra, de que a forma os termos do acordo de paz vão ou não beneficiar a Europa. Mas, ainda é muito cedo para termos uma resposta.

Do ponto de vista económico, também temos uma incógnita, porque não se consegue perceber exatamente de que forma a Europa se vai relacionar com a China no pós-guerra. E com os Estados Unidos, que, como disse, se tornaram cada vez mais protecionistas. Contudo, é previsível que, no médio prazo, percebam que o protecionismo pode ser bom para conter a China e para criar empregos, mas não é suficiente, porque o país também vive da exportação. E, por isso, é natural que procurem parceiros absolutamente confiáveis, que é o caso da Europa. Penso que o protecionismo económico dos Estados Unidos vai ter limites e vai empoderar, digamos assim, a Europa.

Há uma outra questão que se prende com o grande eixo de comércio internacional. Neste momento é o eixo Estados Unidos-China, mas não sabemos como se vai desenvolver. O papel da Europa também estará muito relacionado com a forma como mantiver as suas relações com a China e com os Estados Unidos. No fundo, estamos a falar de grandes polos de poder que, neste momento, têm, tendencialmente, uma política – os Estados Unidos mais protecionista, a China mais aberta ao mercado. E a Europa é, tendencialmente, a favor da economia de mercado, mas depende, para sua segurança, pelo menos por enquanto, dos Estados Unidos.

E, portanto, todas estas indefinições não nos deixam propriamente olhar para o futuro. Mas, deixam-nos perceber que há um conjunto de decisões que os vários atores vão ter de tomar e que vão definir os seus papéis no mundo geopolítico do futuro.

Em que medida a pandemia foi o gatilho desta nova ordem mundial? Se tivesse acontecido “apenas” a pandemia falaríamos na mesma de uma nova ordem mundial ou o conflito armado foi determinante?

O problema é anterior, vem da crise económico-financeira de 2008. Nessa altura, chegou-se à conclusão de que o modelo de globalização não era propriamente um modelo que tenha empobrecido os países – muito pelo contrário, permitiu à China e à Índia resgatarem milhões da pobreza –, mas, em países que já eram ricos, o que aconteceu foi que a globalização criou uma desigualdade social muito grande e um fosso muito maior entre ricos e pobres.

Surgiram dois tipos de problemas. Primeiro, o problema da instabilidade social, porque quanto mais pobres existem e quanto maior a desigualdade social, mais fragilizada fica a paz social. E, depois, uma espécie de aniquilação de uma parte fundamental da classe média, ou seja, uma parte pequena da classe média enriqueceu muito e uma fatia significativa empobreceu. E para as democracias funcionarem verdadeiramente precisam que a classe média seja a fatia maior da sociedade, porque são os que têm poder de compra, poder de pensamento. Uma democracia saudável precisa de uma classe média saudável.

Penso que o modelo de globalização se começou a questionar na crise de 2008. Depois, tem tido localmente grandes movimentos, não antiglobalização tout court, mas que usam este fracasso interno da globalização para tentar criar novas realidades políticas. Nos Estados Unidos, temos uma polarização política enorme. Na Europa, ainda não temos propriamente uma polarização, a não ser em países como o Reino Unido e a Polónia, mas temos uma fragmentação político-partidária em que apareceu um conjunto de partidos, quer de extrema esquerda, quer de extrema direita, que desestabilizam, no fundo, sem conseguirem vencer eleições. Vamos ver o que vai acontecer nas próximas eleições europeias, mas, nas últimas, um quarto do parlamento passou para as mãos desses partidos antieuropeus. A pandemia veio agravar essa situação, porque, evidentemente, os mais desfavorecidos foram os que tiveram menos acesso a tudo. Foram, nomeadamente, os que perderam os empregos. Agravou o que já se sentia na crise de 2008.

 

Fonte: Store Magazine - Jan/Março 2023

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