Em que medida poderá aquela iniciativa legislativa europeia ter impacto na revisão da legislação nacional?
Recorda-se que o regime das PIRC agrega, sob uma designação genérica (práticas restritivas do comércio), normas de variada natureza e dirigidas a diferentes destinatários, imbuídas de valores antagónicos e difíceis de identificar, mas cujo enforcement se tem reconduzido, praticamente a título exclusivo, à detecção, investigação e tentativa de punição das “(re)vendas com prejuízo”.
Ora, conforme escreveu recentemente Miguel Sousa Ferro, as vendas com prejuízo “morreram”. Para o seu irreversível óbito contribuíram e continuarão a contribuir três factores.
Primeiro, o acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 14.05.2014 que, pelo sentido da sua decisão, mas, sobretudo, pela sua robusta e inequívoca fundamentação, “arrasou” com a configuração da venda com prejuízo como uma infracção de natureza puramente formal, desligada da sua realidade económica e do contexto das relações comerciais abrangentes, complexas e duradouras entre fornecedor e distribuidor (e que não se podem reduzir a uma série de episódios autónomos e instantâneos de compra e venda de bens).
Segundo, a reformulação, a todos os títulos infeliz e atabalhoada, do n.º 2 do artigo 5.º do DL PIRC, operada pelo Decreto-Lei 220/2015, que provocou, definitivamente, a implosão do instituto, tornando-o impossível de ser interpretado e aplicado (logo, sancionado) no que se refere ao preço de aquisição do produto revendido; assim se propagou à totalidade do instituto da revenda com prejuízo, a inutilidade ou impossibilidade que originariamente infectava apenas o n.º 5 da mesma norma – referente ao preço de revenda em caso de descontos ditos diferidos (vulgo “em cartão” ou “em talão”).
Terceiro, o reconhecimento progressivo pela jurisprudência europeia do Tribunal de Justiça de que, em regra e salvo em circunstância estritas, as normas nacionais de proibição de revenda com prejuízo não são conformes com o Direito europeu, em particular com a Directiva 2005/29/CE, relativa às práticas comerciais desleais nas relações com consumidores (B2C), conforme já antes tinha sido decidido face a regras nacionais que, entre outras, vedavam:
- ofertas conjuntas de bens ou serviços;
- anúncios à redução de preços em período anterior a saldos ou que não revelassem o “preço de referência”;
- liquidações não previamente autorizadas pela Administração.
E com as vendas com prejuízo deveria igualmente sucumbir a grande maioria das regras constantes do regime das PIRC, com excepção, precisamente, das que constituem UTP, independentemente de estas se restringirem ou não ao rol constante da Proposta.
Mas será que o Direito europeu, ao iniciar um procedimento legislativo em matéria de UTP, virá afinal despertar o regime nacional das PIRC do seu actual estado zombie de completa disfuncionalidade e ineficácia?
Não o entendemos assim.
Pelo contrário, a tomada de posição quanto a um standard comum de harmonização de protecção face a certos comportamentos originados pelo desequilíbrio da posição negocial entre PME vendedoras de bens alimentares e não-PME compradoras dos mesmos coloca o tema na sua perspectiva correcta e circunscreve a área em que a actuação regulatória encontra fundamento.
A Proposta reconhece que se visa operar uma harmonização-base, não proibindo os Estados-Membros de alargar ou intensificar a mesma, desde que se respeitem as normas europeias relativas ao mercado interno, por exemplo as que estabelecem a liberdade de circulação de mercadorias e o direito de estabelecimento.
Em boa verdade, entre nós, o DL PIRC aborda já, no seu artigo 7.º, alguns dos comportamentos visados na Proposta e, não obstante a sua deplorável formulação, está imbuído da mesma teleologia. Sublinhe-se até que a atribuição à ASAE, pelo DL PIRC, de competências de fiscalização, investigação e punição antecipou já a estrutura institucional prevista na Proposta.
Deveria ser, por isso, o único reduto a ser preservado, mas assegurando-se o seu necessário aperfeiçoamento. Isto porque importa recortar e isolar as regras que se justificam pela assimetria da posição negocial entre comprador e vendedor, de todas as restantes.
Esta circunscrição é necessária para evitar a produção de efeitos nefastos, lá onde nenhum sentido faz assegurar aquela protecção. As regras relativas à proibição da venda com prejuízo, à não-diferenciação das condições de oferta de bens e serviços (ou “discriminação”), à limitação ou condicionamento da actividade promocional ou das propostas de valor disponibilizadas ao consumidor são reconhecidamente geradoras de enormes problemas de criação de “rendas”, de facilitação da imposição do preço de revenda (resale price maintenance), de atenuação artificial da rivalidade competitiva.
E a manutenção em vigor destas normas é prejudicial ao bem-estar geral, medido pelo único critério histórica e cientificamente meritório e compatível com o Estado de Direito: o bem-estar medido pela óptica do consumidor (consumer wellfare).
Importa, por isso, não prolongar a agonia de um conjunto de regras anacrónicas, desfasadas da nossa realidade económica, contraproducentes nos seus efeitos e geradoras de enormes custos de contexto e de insegurança jurídica.
Seria, pois, manifestamente errado interpretar o movimento legislativo que se desenha a nível europeu quanto às UTP (para protecção das PME da fileira alimentar), como uma espécie de desfibrilador, aproveitável para manobras de reanimação de um corpo de regras nacionais cujo âmbito primordial de aplicação, objectivo e subjectivo, finalidade e razão de ser nada têm a haver com os da Proposta da Comissão Europeia.
Joaquim Vieira Peres, sócio da Morais Leitão Galvão Teles Soares da Silva
Fonte: Store