Foi aí que teve origem o conceito de desenvolvimento sustentável – “Satisfazer as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades” – no decurso de extensos debates públicos que se distinguiram pela sua abrangência. O relatório “O Nosso Futuro Comum” (Our Common Future), publicado pela Comissão em abril de 1987, deu o impulso para a realização da Cimeira da Terra de 1992, no Rio de Janeiro, presidida por Maurice Strong. Se recuarmos um pouco mais no tempo, apercebemo-nos de que as Nações Unidas só se começaram a interessar pelas questões do Ambiente a partir da Conferência de Estocolmo sobre Desenvolvimento e o Meio Ambiente Humano realizada em 1972, cujo secretário foi Maurice Strong. Nas décadas de 1970, 1980 e 1990, o mundo progrediu muito, deslumbrado com a chamada Grande Aceleração. Vivia-se um período de paz internacional, iniciado com o fim da 2.ª Guerra Mundial (2GM) em 1945, no qual houve um crescimento muito acentuado da economia e da prosperidade económica, da produção e do consumo de bens e serviços, da população mundial, do uso de recursos naturais, da mobilidade e do transporte, dos fluxos de comunicação e informação, do conhecimento científico, da tecnologia e da inovação, e no qual se desenvolveu a Revolução Digital. Desde o final da 2GM até 24 de fevereiro de 2022, houve muitos e crescentes conflitos armados no mundo, mas foram, sobretudo, conflitos armados não internacionais (ou internos), a maioria não estatais, internacionalizados ou não. A guerra na Ucrânia provocada pela invasão russa constitui o primeiro conflito armado internacional de grande dimensão na era das preocupações humanas com o desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade. É, pois, oportuno revisitar os conceitos de guerra e de sustentabilidade.
Quando se fala sobre sustentabilidade e guerra analisam-se, principalmente, as consequências da guerra sobre o ambiente e o clima, mas olvidam-se os seus impactos socioeconómicos. Note-se, contudo, que o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 16, da Agenda das Nações Unidas para 2030, é atingir a “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”. Efetivamente, a sustentabilidade tem três componentes – social, económica e ambiental – e a paz é fundamental para as duas primeiras. Note-se que sem crescimento económico e desenvolvimento social não é possível assegurar a sustentabilidade ambiental. A guerra é um combate que destrói a sustentabilidade. É absolutamente incompatível com a sustentabilidade. Como será, então, possível explicar a divergência profunda entre a aparente adesão e entusiasmo, praticamente universais, para com, por um lado, os ODS e a sustentabilidade e, por outro, o envolvimento numa guerra na Europa que está a dividir o mundo em blocos de países que se confrontam progressivamente de formas diversas? O problema encontra-se no facto de que a definição de desenvolvimento sustentável da Comissão Brundtland é “extraterritorial” no sentido de pretender ter natureza global. Traduz a preocupação com a sustentabilidade da civilização humana num planeta finito, logo com recursos naturais finitos, e pressupõe que há paz à escala mundial, ou seja, que o espetro de algo comparável à 2GM foi definitivamente afastado durante a magnífica Grande Aceleração. Não foi. A aplicação (e avaliação) dos 17 ODS é feita à escala nacional ou local, mas, no processo de territorialização, surge uma questão essencial que a condiciona – a soberania de cada Estado.
A soberania representa a autoridade e os supremos interesses do Estado. A nível internacional, legitima o exercício do poder a nível nacional e internacional, e a relação e cooperação entre Estados. A promoção e a defesa dos interesses do Estado são dirigidas pela geoestratégica, que envolve valores e recursos militares, económicos, ideológicos, políticos, energéticos e de todos os outros recursos naturais estratégicos. Os progressos relativos à sustentabilidade, num dado país, medidos pelo cumprimento das metas dos ODS, tais como a paz, a justiça, a erradicação da pobreza, o trabalho digno e o crescimento económico, a conservação da biodiversidade terrestre e marinha, a disponibilidade de recursos hídricos, o combate à mudança climática e a transição energética dependem em grande parte da cooperação internacional. Num conflito internacional armado envolvendo indiretamente múltiplos países, a sustentabilidade nesses países e à escala global encontra obstáculos adicionais e torna-se progressivamente mais difícil de ser atingida. A guerra na Ucrânia parece não ser curta e está a ter um impacto transformador na segurança alimentar, economia, sistema financeiro e no status quo geoestratégico do mundo. Contribuiu para agravar a escassez alimentar mundial e para uma crise energética europeia. A situação global atual envolve riscos adicionais de segurança decorrentes da competição geoestratégica feroz entre os EUA e a China. Tais preocupações levaram à imposição de sanções e a várias formas de protecionismo que violam as regras do comércio internacional estabelecidas pela Organização Mundial do Comércio (OMC). O agravamento das relações entre os países ocidentais, em particular os EUA, e a China intensificaram as sanções comerciais, económicas, financeiras e tecnológicas, especialmente nas tecnologias com usos militares, das energias renováveis e da transição energética e no acesso aos minerais de onde se extraem os elementos químicos críticos para a transição - cobalto, cobre, lítio e níquel. A guerra e a enchente de sanções impostas pelo Ocidente unilateralmente, ou que geraram sanções de resposta, agravaram as ruturas nas cadeias de abastecimento, resultantes da pandemia da Covid-19, e provocaram a inflação. Estima-se que, atualmente, cerca de 65% do comércio entre os EUA e a China não respeita as regras da OMC. Descurar o papel da OMC na coordenação do comércio mundial é uma tendência perigosa. Ao facilitar a expansão do comércio internacional desde a sua criação, em 1995, a OMC contribuiu para a globalização e para libertar da situação de pobreza severa ou extrema centenas de milhões de pessoas nos países em desenvolvimento, o que representou um avanço notável nas componentes social e económica da sustentabilidade. Desde o início de 2020, o mundo tem sido confrontado com uma série de crises globais sobrepostas com impactos e respostas altamente diferenciadas no Norte Global e no Sul Global, as quais agravaram as desigualdades entre os dois grupos. A humanidade enfrentou a pandemia e agora a crise da guerra na Ucrânia, a crise das dívidas nacionais e global, a crise das alterações climáticas, a crise da biodiversidade e a crise da fome, que detém um máximo histórico de 49 milhões de pessoas em 46 países em risco de fome ou de malnutrição grave (FAO-WFP, Early warning on acute food insecurity, 2022). A maioria destes desafios de sustentabilidade global interligados têm a sua origem em tendências de longo prazo que não será possível resolver apenas com a ajuda da ciência e da tecnologia porque estão enraizados na natureza humana. A sustentabilidade não é confinável à escala nacional. Depende do que se passa em todos os países e sobretudo de haver paz e cooperação geoestratégica entre as grandes potências económicas e militares. O período de paz internacional de 77 anos entre o final da 2GM e 2022 findou. O sonho da sustentabilidade nascido nessa paz relativa tornou-se um objetivo mais complexo e exigente, mas que está ao nosso alcance. Apesar de todas as dificuldades, é necessário travar a guerra e restabelecer a paz. Conhecer o passado, saber interpretar a complexidade do presente e ter a força de vontade para lutar pelo nosso futuro comum são valores essenciais para atingir a sustentabilidade.
Filipe Duarte Santos, professor da Universidade de Lisboa.
Fonte: Store Magazine